Os Terroristas e o Pós-Modernismo

9 de Novembro, 1989 – a queda do Muro de Berlim. O mundo torna-se um novamente, é o início da era pós-moderna. O pós-modernismo ou pós-modernidade é a condição sócio cultural estabelecida, após a queda do Muro, com expansão do capitalismo, firmando-se de vez com a chegada do século XXI. O termo “pós-modernismo” é, por muitas vezes, debatido quanto sua utilização por diferentes escolas de pensamento; o filósofo francês Gilles Lipovetsky, por exemplo, prefere a utilização do termo “hipermodernidade”. No entanto, abstraindo as diversas teorias sobre a utilização do termo, é possível afirmar que nós vivemos numa era de pós-modernidade ou além-da-modernidade.
As coisas já mudaram bastante do lado de cá, o avanço dos meios de comunicação facilitam, cada vez mais, a distribuição de uma informação para grandes massas, por meio de jornais, tele-jornais, telefone e, em especial, pela internet. Como um exemplo positivo, pode-se citar a “primavera árabe” e outros tipos de mobilização realizadas através da internet. O mundo está, mais do que nunca, conectado, globalizado, para bem ou mal.
No cinema, um taiwanês chamado Edward Yang já fazia previsões sobre o futuro adiante, com sua obra-prima Os Terroristas, considerado “o FILME pós-modernista” pelo intelectual Marxista Frederic Jameson. Yang, pode ser considerado um dos maiores talentos desperdiçados do cinema. Tendo realizado apenas oito filmes em sua carreira, perdeu uma luta de sete anos contra um câncer de cólon e faleceu com apenas 59 anos (jovem para um cineasta). 
Yang, ao lado de Tsai Ming Liang (Vive L’Amour, A Hora da Partida, Não Quero Dormir Sozinho) e Hou Hsiao-Hsien (Poeira no Vento, Mestre das Marionetes, A Viagem do Balão Vermelho [2007]), liderou o movimento “New-Wave” do cinema taiwanês. Um dos temas mais abordados pelo diretor em sua curta carreira é o conflito entre o moderno e o tradicional e ele nunca o fez melhor do que em Os Terroristas (Kong Bu Fen Zi), com exceção de, talvez, As Coisas Simples Da Vida.
 
A queda do Muro de Berlim, em si, representa a última barreira para a globalização se instalar do lado de lá. Isso aconteceu em 1989. Três anos antes, Edward Yang já encapsulava as relações de uma sociedade interconectada em seu filme-mosaico, Os Terroristas. Esse tipo de filme tem como base um roteiro que procura se focar em diversos grupos de/ou personagens individuais diferentes que, mesmo sem interagir diretamente uns com os outros, relacionam-se, seja por habitarem o mesmo espaço – como em Nashville de Robert Altman, que engloba as relações de mais de quinze personagens, movidos pelo sonho da fama na cidade da musica country -, seja por um problema em comum – a dolorosa relação de pais e filhos em Magnolia, de Paul Thomas Anderson.
Em Os Terroristas, o elemento que une esses personagens é a própria sociedade pós-moderna. O filme se foca em três grupos diferentes de personagens – um jovem fotógrafo, filho de pais ricos; uma delinquente nipo-européia (conhecida como “a garota branca”), integrante de uma gangue de infratores, e um casal à beira da separação (um médico e uma escritora amadora).

O filme abre com uma cena em que dois dos personagens principais se relacionam indiretamente. Numa tentativa de fuga, a “garota branca”, captada pelas lentes do jovem fotógrafo, fratura a perna e é forçada a voltar para a casa de sua mãe, até sua recuperação. Imersa em tédio, a menina começa a passar trotes telefônicos aleatórios, a brincadeira consiste em mandar as vítimas para o antigo apartamento usado pelo grupo de delinquentes, do qual fazia parte.
Enquanto isso, após um ataque de ciúmes de sua namorada, o fotógrafo é obrigado a se mudar de seu apartamento para o apartamento, outrora utilizado pela gangue da “garota branca”, o qual ele transforma em um “quarto escuro” para revelar suas fotos.
Paralelamente, o médico é informado que, em virtude do falecimento do antigo chefe, provavelmente, será promovido a coordenador de sua equipe. Sua esposa, por sua vez, procura inspiração para escrever um romance para uma competição, sem sucesso. Infeliz, volta a se relacionar com um antigo namorado, tentando contornar o fracasso de um casamento em que seu companheiro tem suas atenções focadas inteiramente em seu trabalho (hedonísmo e individualismo, respectivamente, dois dos conceitos citados pelo filósofo Lipovetsky). Ao acaso, um dos trotes da “garota branca” alcança, no outro lado da linha, a esposa do médico.
É interessante observar a forma meticulosa como Yang filma o cabo do telefone – a conexão entre esses dois personagens, totais estranhos um para o outro. Zhou interpreta que a voz do outro lado da linha pertence a uma amante de seu marido. Como as outras vítimas dos trotes, a escritora é induzida a visitar o apartamento, agora habitado pelo fotógrafo. Ela encontra o novo inquilino, não trocam palavras, ela o observa por alguns instantes e vai embora. Esse evento, aparentemente casual, é a manivela que faz a trama entrar em moção.

O trote opera como o estopim de todos os eventos que se seguirão. Zhou pede o divórcio e encontra inspiração para escrever o seu romance, em que cita de forma metalinguística o suposto caso que seu marido tem com a mulher misteriosa do outro lado da linha. O fotografo, ao acaso, encontra-se com a “garota branca” e, após ler a sinopse do livro em um jornal (veículo de comunicação), reconhece os eventos que realmente aconteceram e avisa o marido, que por sua vez, perde o cargo de chefe, em virtude de boatos que ele teria uma amante, o que seria inaceitável em uma sociedade pós-moderna (o filósofo alemão Jürgen Habermas já citava o “neoconservadorismo” como um dos principais conceitos do pós-modernismo). Os eventos que se seguem, aqui não serão revelados, cabe ao leitor assistir e descobrir por si só as consequências que atos tão pequenos, em uma sociedade interconectada, tem na vida do próximo.
O cuidado técnico de Yang é milimétrico. Em momento nenhum, ao desenvolver a trama, o diretor perde o foco da mensagem final por trás da obra, sempre que possível, Yang capta em belos planos abertos as paisagens da cidade decadente e o emaranhado de fios de eletricidade e telefonia (as “conexões” daquela sociedade). O uso das cores também merece destaque. O uso de cores fortes dão um ar surrealista, que aliado com a ausência de trilha musical (salvo em momentos chave), criam uma interessante antítese na direção que o filme procura levar o espectador. As cores procuram externalizar as emoções destes indivíduos: o azul, a infelicidade, e o vermelho, a inquietude emocional – essa última, sempre presente nos personagens (na casa do médico e na “sala escura” do fotógrafo).
É fascinante pensar como é fácil relacionar os eventos retratados em Os Terroristas com muitos acontecimentos cotidianos, ocasionados pela interligação da sociedade – uma foto publicada e compartilhada na internet pode literalmente acabar com a vida de uma pessoa (os famosos “virais” compartilhados em redes sociais como o facebook). É esse o ponto que Wang procura firmar em toda a duração de seu longa. Ainda lembrando do fato de que o filme foi realizado três antes da derradeira queda da cortina de ferro, é impossível não qualificar o cineasta taiwanês como um verdadeiro visionário.
Após a leitura, cabe ao espectador conferir essa obra-prima, que apesar de ser uma filme desafiador, dono de um ritmo extremamente contido, nunca deixa de ser absorvente e pertinente ao nosso atual universo hiper-moderno.

Ficha Técnica:

Título Original: Kong Bu Fen Zi
Dirigido por: Edward Yang
Ano: 1986
País: Taiwan
Elenco: Cora Miao, Bao-Ming Gu e Lichun Li 

Por: Francisco Cannalonga